Por Vânderson Domingues*
No livro Saint Genet: Ator e mártir, Sartre escreveu uma frase que se tornou muito famosa e que é muito citada até hoje: “O importante não é o que fazemos de nós, mas o que nós fazemos daquilo que fazem de nós.”. De forma desavisada, podemos cair na interpretação equivocada de que tudo na vida do indivíduo depende exclusivamente da ação pessoal dele. Mas isso seria ignorar outra noção muito importante na filosofia de Sartre, a que diz que somos seres em situação.
É que Sartre também escreveu sobre essa noção importante de sua filosofia, ao afirmar que o ser humano “se define antes de tudo como um ser em situação”. Mas o que define essa situação? Segundo o próprio Sartre, como “um todo sintético com sua situação biológica, econômica, política, cultural, etc.”. O filósofo complementa dizendo que “não é possível distingui-lo [o ser humano] dessa situação, pois ela o forma e decide de suas possibilidades, mas inversamente, é ele que lhe atribui o sentido escolhendo-se em e por ela.”.
Dessa forma, se estamos situados e nossas possibilidades se dão a partir disso, ou ainda, se “o ser-em-situação define a realidade-humana”, como podemos ignorar o sistema social como preponderante em nossa existência?
Na sociologia se diz que o capitalismo é um fato social. Isso quer dizer, em poucas palavras, que não conseguimos mudar esse “ambiente social” simplesmente pela vontade de criar nossa própria realidade. Em outras palavras, temos que lidar com isso e somos apesar disso, pois o capitalismo nos é imposto.
Na prática, muito do que nos acontece advém direta ou indiretamente do ambiente social, por conseguinte, do capitalismo. Por exemplo, se trabalhamos numa empresa ou até mesmo se somos autônomos, não decidimos por determinada carga horária de trabalho, numa manhã de domingo na praia, em nome do próprio bem-estar. Ao contrário, isso é simplesmente colocado para nós a partir de certa demanda alinhada com um modo de produção maior, que precisa existir para a “máquina capitalista” funcionar. E, vale lembrar, maior tempo no trabalho muitas vezes implica menos tempo de lazer, inclusive, para a praia.
Desse modo, quando “culpamos” o capitalismo predatório pelo que nos acontece e pelas limitadas possibilidades de responder assertivamente, não significa que estamos nos retirando da responsabilidade existencial, mas que reconhecemos que estamos em situação, mais especificamente de tensão relacional no mundo. Uma situação contemporânea de caráter social, econômico e político, como as estatísticas mostram, causadora de sofrimento psíquico e que o filósofo Byung-Chul Han tão bem denominou de “sociedade do cansaço”.
É nesse ponto que podemos lembrar também de outras duas noções muito importantes na filosofia de Sartre e que estão intrinsecamente ligadas: liberdade e responsabilidade. Para Sartre, o ser humano está “condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si próprio; e no entanto livre, porque uma vez lançado no mundo, é responsável por tudo quanto fizer”.
Mas, então, o que podemos fazer “daquilo que fazem de nós” apesar do capitalismo ou de quaisquer circunstâncias? Para tal reflexão é preciso considerar que para Sartre o ser humano em liberdade “nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo”, ou seja, que não está pré-determinado assim como uma “pedra ou uma mesa”. Para o filósofo, o ser humano é livre porque não existe natureza humana na qual se apoiar e ser responsável abrange mais do que o individualismo, já que “escolher ser isto ou aquilo é afirmar, concomitantemente, o valor do que estamos escolhendo” para toda a humanidade.
Assim, uma possibilidade diante da facticidade capitalista seria se engajar em um movimento emancipatório de si mesmo, mas como quem legisla igualmente para os outros. Um ato que se dá na apropriação existencial do próprio destino ao assumir e responsabilizar-se pelas escolhas e suas consequências, mesmo que estejamos em situações adversas e ou que nos aconteça algo difícil.
Em suma, a liberdade é constitutiva do projeto existencial sendo que, por um lado, estamos situados, por outro, temos responsabilidade. Isso significa que como seres em situação, invariavelmente estaremos diante de escolhas livres e responsáveis, e que podemos evocar o conselho que o próprio Sartre deu a um jovem diante de uma questão espinhosa para resolvermos assuntos cotidianos e ou transformar nossa existência: “você é livre; escolha, quero dizer, invente.”.
*Vânderson Domingues é filósofo, psicanalista existencial, escritor e compositor. Fundador do Papo de Filósofo®
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Referências
SARTRE, J.-P. O Existencialismo é um humanismo. Trad. João Batista Kreuch. RJ, Editora Vozes de bolso, 2014.
SARTRE, J.-P. O ser e o nada – ensaio de ontologia fenomenológica. Trad. de Paulo Perdigão. RJ, Editora Vozes, 1997.
SARTRE, J.-P. Reflexões sobre a questão Judaica. In: Reflexões sobre o racismo. SP, Difusão Europeia do Livro, 1968.
SARTRE, J.-P. Saint Genet: Ator e mártir. Trad. Lucy Magalhães. RJ, Editora Vozes; 2002.