Descartes e Duns Scotus |
Por Vânderson Domingues*
A filosofia de René Descartes (1596–1650) é considerada uma das grandes metafísicas da modernidade. Pode-se dizer que, mesmo sem uma intenção clara de ter como objeto de estudo a metafísica ou a ontologia, o trabalho do famoso filósofo ocupa uma posição importante para a história da metafísica. Isso porque, a abordagem de Descartes, que tem como máxima o ego cogito, ego sum (eu penso, eu existo), coloca no sujeito “a problemática clássica da metafísica que consiste em determinar qual é o princípio do ser enquanto ser” (KONTIC, 2020).
A ocupação filosófica de Descartes
era o sujeito através do cogito (eu penso) para saber
se há algo para além do pensamento do “eu”. Mesmo assim, Descartes parece
se contrapor à metafísica clássica em seu livro Meditações de filosofia
primeira ao buscar respostas às questões clássicas como “o que é o
ser?” e “qual é o seu princípio?”.
Nesse sentido, Descartes
buscou “explicar os princípios da metafísica a partir de uma ordem que
parte de um conhecimento inicial perfeitamente evidente, e a partir dele deduz
os conhecimentos que se segue dele” (KONTIC, 2020). Divide assim sua explanação
em duas ordens distintas, a ordem das essências (que parte de
Deus) e a ordem das razões (que parte do conhecimento do nosso
espírito até chegar ao conhecimento de Deus e, depois, dos corpos).
Porém, Descartes, elucidou em sua
obra Meditações de filosofia primeira – que fora traduzida
como Meditações Metafísicas para o francês – que “o objeto de
suas meditações não é somente Deus e a alma, mas todas as primeiras
coisas que podemos conhecer quando meditamos” (KONTIC, 2020). Isso indica
que a sua proposta filosófica envolveria mais do que a metafísica até então,
que parecia estar circunscrita a alma e a Deus.
E isso também nos leva à necessidade
de compreender o sentido de meditação utilizado por Descartes,
que difere em relevante medida das concepções orientais e do entendimento
contemporâneo leigo de “relaxamento”. Para o filósofo, meditar “é desprender o
espírito dos sentidos e evitar os prejuízos” (KONTIC, 2020), em outras
palavras, o sentido se encontra nos primórdios do cristianismo e significa o
período de reflexão entre a leitura da bíblia e a contemplação da divindade.
Assim, o filósofo Descartes, em seu
escopo filosófico descrito no livro Meditações de filosofia primeira, trabalhou
com três meditações intituladas “do que podemos duvidar”, “eu penso, eu sou” e
“a existência de Deus”.
A sua primeira meditação, “do que
podemos duvidar”, sugere, de antemão, que não se pode duvidar de tudo e que se
duvidamos é porque “buscamos alguma certeza” (KONTIC, 2020). Para isto,
Descartes se utiliza da dúvida radical - duvida-se de cada ideia que pode ser
duvidada - sobre a existência do conhecimento verdadeiro, o que significa que a
duvida deve alcançar a raiz de nossas certezas.
Além disto, Descartes utilizou três
argumentos: o primeiro foi sobre a limitação dos sentidos que seriam fonte de
ilusão e engano, portanto, não confiáveis. O segundo foi o famoso argumento do
sonho no qual discorreu sobre o corriqueiro acontecimento de se experienciar
sonhando coisas semelhantes as da vigília, chegando à conclusão de que não se
pode distinguir com clareza o estado de vigília do sonho: “não há indícios
concludentes nem marcas bastante certas por onde se possa distinguir
nitidamente a vigília do sono” (DESCARTES, 2015, p. 33 apud KONTIC,
2020). O terceiro argumento – que na verdade é outra forma do argumento do
sonho – foi o da loucura. O argumento de Descartes passa por indagações tais
como “Os loucos não pensam estar vestidos quando eles estão nus? Quem pode nos
garantir que estamos em posse de toda nossa razão? E se todos nós fossemos
loucos?” (KONTIC, 2020).
Porém, como “não se pode duvidar de
tudo”, Descartes também fez uma ressalva com a alegação de que algumas
coisas permaneceriam verdadeiras tanto em sonho quanto em vigília, que são a
extensão, a figura, a quantidade. Mesmo que a extensão e a figura sejam falsas
– como no caso de alguns sonhos – ainda seria verdadeira a existência da
extensão e da figura: “estou aqui, sentado perto do fogo, vestido com um
roupão, com este papel entre as mãos, e outras coisas dessa
natureza” (DESCARTES, 2015, p. 31 apud KONTIC,
2020).
Em sua segunda meditação, “eu penso,
eu sou”, Descartes evoca o ceticismo radical. Com isso, o filósofo busca mais
do que uma certeza matemática encontrada em sua primeira meditação, mas “um
saber que seja indubitável isto é, uma certeza que não pode ser destruída”
(KONTIC, 2020).
Com isso, Descartes propôs um exercício de dúvida metódica e hiperbólica de um gênio maligno. A ideia do gênio maligno – como um ente poderoso – supõe que tudo que diz respeito à realidade externa é engano e ilusão. Porém, Descartes percebeu com o exercício que por mais que fosse enganado, o suposto gênio maligno jamais poderia fazer com que o “eu” fosse nada:
Não há dúvida, então de que eu sou, se ele [o gênio maligno] me engana; e que me engane o quanto quiser, jamais poderá fazer com que eu não seja nada, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bem nisso e ter cuidadosamente examinado todas as coisas, é preciso enfim concluir e ter por constante que esta proposição, Eu sou, eu existo DESCARTES, 2015, p. 42-43 apud Kontic, 2020).
Em sua terceira meditação, “a existência de Deus”, Descartes “estremece a hierarquia ontológica clássica” (KONTIC, 2020):
Agora considerarei mais exatamente se não se encontram em mim, talvez, outros conhecimentos que eu ainda não tenha percebido. Estou certo de que sou uma coisa que pensa; mas então não sei também o que se requer para deixar-me certo de alguma coisa? (DESCARTES, 2015, p. 58 apud Kontic, 2020).
Desta forma, Descartes passou a
examinar a ideia de perfeição. Para o filósofo, de acordo com Machado (2020), “quando dizemos que alguma coisa é imperfeita, estamos
usando a ideia de perfeição sob a forma de falta de alguma coisa” e assim
conclui que “a ideia de perfeição não se origina nos sentidos, mas na razão”.
Portanto, de acordo com Kontic (2020), Descartes partiu da “ideia de Deus que ele descobre em seu espírito, portanto sem sair dos limites estabelecidos do cogito” já que “Deus só é alcançado por meio da ordem das razões, que tem como ponto de partida o próprio sujeito” e “Deus se torna nada mais que uma ideia do sujeito”.
Contraponto
Para fazer um contraponto à novidade da teoria de Descartes, podemos pensar no filósofo e teólogo escocês da baixa idade média, Johannes Duns Scotus (1265–1308) que continuou a tradição aristotélica de Tomás da Aquino ao mesmo tempo em que a retificou em alguns em pontos.
Para Duns Scotus, de acordo com
Kontic (2020), “a noção mais universal é a do ser, que é pressuposta por toda
ciência, mas que é estudada pela primeira de todas as ciências, a ciência
transcendente”. Por isso, o filósofo defendeu que existem quatro ciências
especulativas: além da física, matemática e da teologia, a quarta seria a
“ciência transcendente”.
Desta forma, Duns Scotus pressupôs
que há um conceito unívoco do ser que valeria tanto para o criador (Deus)
quanto para a criatura (o ente) e que o “conceito do ser é não
somente comum a tudo o que existe, mas também que ele
contém virtualmente todos os outros, que são como que determinações
dele” (KONTIC, 2020).
Além disso, de acordo com a revista
Pedagogia & Comunicação (2020), o filósofo afirma que “a metafísica não
pode conhecer Deus como Deus, mas apenas como ser”. Por isso, de acordo com
Kontic (2020), “o ser, para Scotus, é simplesmente a essência pensada
como ‘natureza comum’” e a natureza comum por sua vez se realiza na existência
imanente como um modo de ser, sendo que cada ser humano, “além da essência
humana, contém suas próprias qualidades ou peculiaridades” (PEDAGOGIA &
COMUNICAÇÃO, 2020).
Diferenças
Para Descartes, a ordem das razões
nos diz que partimos do conhecimento do nosso espírito – hegemonia do sujeito –
até chegarmos ao conhecimento de Deus e, em seguida, ao dos corpos. Em suma,
retomando em certa medida a compreensão tradicional de metafísica, mais
especificamente a de Platão – por sua inspiração em um modelo geométrico –,
Descartes compreende que Deus garantiria a conexão do sujeito com o mundo
exterior e que Ele deveria ser alcançado através da razão.
Duns Scotus, por sua vez, deixa claro
que Deus é infinito e perfeito e que há “compatibilidade entre infinitude e o
ser” (SANTOS, 2020). Porém, ainda segundo Santos (2020), Scotus “concebe [Deus]
como pura e absoluta liberdade, acima de qualquer razão ou lei, e ininteligível
pelo pensamento filosófico”. Isso quer dizer que “se Deus não é ‘logos’, como
o homem, mas abismo de liberdade, então não pode ser conhecido pelo ‘logos’
humano”.
Além disto, Descartes não afirma que
somos feitos da mesma essência de Deus. Duns Scotus, ao contrário, diz que,
segundo Kontic (2020), apesar da existência ser indiferente à natureza
comum, a diferença entre essência e existência não é real. Com
isto, Deus, para Descartes, é uma ideia da hegemonia do
sujeito que pensa, enquanto que para Duns Scotus, apesar do ser humano ter
perdido “a intuição direta das essências dos entes” (SANTOS, 2020), não existe
diferença a priori entre existência e o ser, e, por isso, ele
retoma a “ideia de uma ciência transcendente do ser enquanto ser” (KONTIC,
2020).
Por tudo posto, podemos afirmar que,
apesar das importantes contribuições para a Metafísica, existem diferenças
cruciais entre a filosofia de Descartes e de Duns Scotus ao que tange, no
primeiro, a hegemonia do sujeito, e no segundo, a questão do ser.
*Vânderson Domingues é orientador filosófico, escritor, compositor e poeta. Graduado em Filosofia e pós-graduado em Clínica Existencialista Sartriana.
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REFERÊNCIAS:
KONTIC, Sasha. [S. I.], 2020. Metafísica. Disponível em:
<http://digital.unisa.br/pluginfile.php/996299/mod_resource/content/0/0.MA.Metaf%C3%ADsica.pdf>.
Acesso em: 01 de Setembro de 2020.
MACHADO, Geraldo Magela. [S. I.], 2020. Descartes e a existência de
Deus. Disponível em:
<https://www.infoescola.com/filosofia/descartes-e-a-existencia-de-deus/>.
Acesso em: 31 de Agosto de 2020.
PEDAGOGIA & COMUNICAÇÃO. [S. I.], 2020. Johannes Duns Scotus.
Disponível em:
<https://educacao.uol.com.br/biografias/johannes-duns-scotus.htm>. Acesso
em 01 de Setembro de 2020.
SANTOS, Renan. [S. I.], 2020. Duns Scotus - Ser humano perdeu a
intuição direta das essências dos entes. Disponível
em: https://educacao.uol.com.br/disciplinas/filosofia/duns-scotus-ser-humano-perdeu-a-intuicao-direta-das-essencias-dos-entes.htm.
Acesso em: 01 de Setembro de 2020.